Hong Kong brasileira: proposta de “zona franca” para atrair capitais divide opiniões

Um Centro Financeiro Offshore (CFO) no Brasil. A proposta é do economista, professor e consultor Roberto Troster, que defende uma “zona franca financeira” no país com regras próprias de tributação, câmbio e serviços, em moldes parecidos com os já existentes em lugares como Hong Kong e Londres.
De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), CFOs são jurisdições que oferecem operações voltadas principalmente a grandes organizações e investidores de alto patrimônio não residentes (mas não exclusivamente) nas localidades onde elas estão instaladas.
O que é uma zona franca financeira e onde ela poderia ser criada no BrasilOs CFOs ou zonas francas financeiras são usados como ferramentas para otimização fiscal e proteção patrimonial, mas frequentemente levantam suspeitas de práticas irregulares, daí alguns deles serem chamados de “paraísos fiscais”. Apesar da controvérsia, organismos internacionais reconhecem que desempenham um papel legítimo ao facilitar o fluxo de capitais.
O modelo sugerido por Troster funcionaria como um desdobramento do Sistema Financeiro Nacional, com regras específicas que coexistiriam com a regulamentação vigente, sem necessidade de modificá-la. “Beneficiaria todos os agentes envolvidos no comércio exterior”, sustenta.
Conforme o autor, São Paulo é a cidade ideal para abrigar o CFO por concentrar, em sua análise, todos os elementos necessários: infraestrutura física consolidada, mão de obra especializada, escritórios de advocacia e consultorias de padrão internacional, além de tecnologia de ponta e serviços de apoio.
A iniciativa conta com o apoio de nomes experientes do setor. “A proposta é muito boa”, diz Antonio Carlos Castrucci, ex-presidente da ABBC (Associação Brasileira de Bancos) e ex-diretor da Febraban (Federação Brasileira de Bancos). “Ela deve ser seriamente considerada.”
A ideia também está em sintonia com posicionamentos recentes de representantes dos meios econômico e financeiro brasileiros, que vêm defendendo a necessidade de serem criados mecanismos modernos a fim de atrair investimentos estrangeiros e ampliar a competitividade brasileira no cenário internacional.
Entre eles está Luiz Carlos Trabuco, ex-presidente do Bradesco, que diz acreditar na importância da inovação regulatória como fator decisivo para trazer novos investidores ao Brasil. Na visão de Trabuco, para competir globalmente é fundamental haver mecanismos capazes de facilitar a entrada e a gestão de recursos externos, inclusive com a criação de ambientes regulatórios específicos e diferenciados.
Em linha semelhante, o ex-presidente do Banco Central Roberto Campos Neto, embora não tenha tratado diretamente da proposta de CFOs no país, atuou durante sua gestão pela modernização do setor financeiro brasileiro. Dentro de sua visão de integração internacional do mercado, Campos defende maior flexibilização regulatória.
Zona franca financeira no Brasil: vantagens, riscos e obstáculosEspecialistas alertam sobre alguns obstáculos à criação de uma zona franca financeira no Brasil.
O professor da FGV Direito Rio Gabriel Quintanilha destaca que a legislação brasileira precisa de profundos ajustes para que essa nova estrutura funcione adequadamente. “Os principais desafios serão a complexidade do sistema tributário, as lacunas na legislação, a falta de transparência e os custos de compliance”, afirma.
Nesse contexto, a entrada em vigor da Lei 14.754/2023, que em 2024 passou a tributar os lucros de investimentos feitos por brasileiros no exterior, deu novo impulso aos defensores da ideia. A mudança nas regras de tributação pode incentivar gestores de patrimônio e investidores a trazerem suas operações para cá.
Dados da Receita Federal mostram que, em 2023, brasileiros mantinham cerca de R$ 1,1 trilhão em ativos no mercado externo. Troster argumenta ser possível que parte desses recursos seja transferida a uma estrutura no Brasil, junto com operações de comércio exterior e transações internacionais atraídas ao país.
Mas nem todos compartilham do mesmo otimismo. Quintanilha considera que o retorno de ativos a um CFO em território nacional pode não ser tão atraente como parece: “Não vejo impactos positivos com relação à repatriação, sobretudo em razão da manutenção de reservas em dólar como moeda forte”.
Além dos desafios legais, a proposta levanta preocupações sobre seus possíveis impactos na concorrência. Analistas alertam que, sem regulamentação clara, pode haver práticas que comprometam a igualdade de condições no mercado. Pequenas e médias empresas, já afetadas por alta carga tributária e burocracia, poderiam sair em desvantagem diante de um regime mais favorável a grandes fluxos de capital.
Troster minimiza esse risco. Ele avalia que a concorrência se daria com agentes estrangeiros, não internamente, e ressalta que o centro proposto para o Brasil permitiria operações mais ágeis, em português e com custos reduzidos – o que, projeta, beneficiaria especialmente pequenos e médios exportadores.
O consultor ainda aponta possíveis ganhos fiscais indiretos. Apesar de a tributação direta sobre CFOs ser geralmente mínima ou nula, haveria aumento na arrecadação com tributos sobre serviços e atividades associadas. Isso, segundo ele, reforça o potencial positivo do centro tanto à economia quanto às contas públicas.
Zona franca financeira exige fiscalização rigorosa, alertam especialistasPor fim, a iniciativa também levanta preocupações quanto à fiscalização e à transparência. Experiências têm demonstrado que os CFOs, mesmo quando legalmente constituídos em suas respectivas jurisdições, muitas vezes operam à margem dos sistemas de controle tradicionais internos.
A crítica é reforçada pelo professor e escritor Ladislau Dowbor, um dos principais estudiosos do sistema financeiro brasileiro e para quem tais estruturas “deveriam ser extintas”. Ele afirma que enquanto o cidadão comum paga impostos, os “super-ricos” utilizam offshores para “driblar” o sistema tributário e concentrar riqueza.
Troster rebate, destacando que o marco jurídico incluiria mecanismos de resolução de disputas compatíveis com fóruns internacionais e manteria elevados padrões de supervisão e transparência.
Na avaliação do economista, o Banco Central seria o responsável pela fiscalização, com melhores condições de monitorar empresas sediadas aqui no país do que as localizadas no exterior. “A supervisão existente no Brasil está entre as mais eficientes do mundo”, diz o autor da ideia.
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